Tudo o que você podia ser

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por Mariana Paiva

 

Bem que eu podia falar de outra coisa. Tem tanta notícia nos jornais que parece nunca faltar assunto, e eu que sou jornalista sempre posso arriscar um palpite sobre qualquer coisa. Meu DRT deixa. Mas hoje quero falar de uma coisa que aprendi brincando de fazer o tempo voltar.

 

Havia muitos anos que eu tinha deixado de ser estagiária. A menina tímida que não perguntava e ia observando até acertar, tinha que ser tudo perfeito por onde eu passasse, leonina-exigente. O mundo pesando muitos quilos, como diria Erasmo. Quinze anos depois, estou eu de novo estagiária, 30 horas por enquanto, nem um real a mais na conta bancária de quem paga aluguel, luz, água e por aí vai. Estagiária de professora, que eu já sou faz tempo, mas agora de criança.

 

Subindo a rampa em direção à sala de aula, eu disse à coordenadora, toda contente, que adoro escola. Que foi lá que vivi os anos mais perfeitos de todos, com tudo de bom e de ruim que eles tiveram. Mas a verdade mesmo eu soube ali, em frente ao quadro de giz, aquele barulho ensurdecedor de gente de 11, 12 e 13 anos descobrindo a vida por segundo, a sala ficando pequena pra uma brincadeira de com quem será. O pessoal do sexto ano (a boa e velha quinta série) me perguntando o que um feijão disse ao outro. E eu rindo solto, esperando alguma resposta filosofia-profunda-de-criança. A menininha bem pequenininha sentando na minha cadeira (ali, temporariamente) e dizendo que se sentia feliz em olhar como se fosse uma professora. E que queria ser assim no futuro.

 

O quadro negro cheio de corações quando deixaram a sala. 50 minutos e declarações derramadas de amor por mim. Pode confundir gostar com amar. Pode ficar de crush com o menino da outra turma que nunca vai saber. Pode dizer que gostou de mim e me dar de presente umas figurinhas do álbum da Copa América – e ficar meio desconcertado quando descobrir que, no meio do montinho, foi a figurinha de Ronaldo, tão importante. Pode tomar essa de volta, meio sem jeito. Pode esse afeto simples por alguém que se viu tão pouco mas que já sabe que fica na alma. Todo mundo fica, e isso aqui eu não preciso ensinar: aprendo. Volto no tempo, entre cadernos de unicórnios e de Batman. Fico pequena e irremediavelmente simples de novo

Vem cá, outono

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* por Mariana Paiva

 

Antes mesmo que você chegue, outono, senta aqui um pouquinho pra conversar. Você que vem agora, já saiba: as notícias hão de te querer forte. É preciso aprender a desviar na hora exata, gingar de um lado a outro, praticar bem praticada a arte da esquiva. Vai ter que vir apesar de. Mas não liga tanto porque se a gente olha pro céu tem uma lua cheia que você traz, um equinócio para tirar as coisas do lugar. Quem sabe, né?

 

E então venha, mas venha sabendo que é preciso amor pra resistir. O verão se despede mesmo tendo sido de tanta chuva, outono, a gente aprende a desfolhar mesmo sem ter florido o tanto que esperava. O jeito é encher a casa de gente, abrir as janelas e as cortinas, colocar uma saia rodada e sorrir. Lembrar de descer primeiro o pé direito quando sair da cama, desvirar as sandálias, fechar as tesouras. Vai que funciona.

 

Se for o caso espalhar riso por todos os cômodos de uma casa, como um incenso que vai queimando e a fumaça se alarga pelos cantinhos menores. Um jasmim, quem sabe. Ou lavanda que cicatrize as dores todas, aqueça o coração nessa lareira que todo mundo guarda do lado de dentro e vez por outra esquece. Aquece, outono. Traz mais calor de gente, mais jardim florido, mais cheiro de boa noite como aquele da varanda de Mariana. Respira fundo e vem, de lua cheia e vento, vem com força pra varrer tudo o que não for bom. Vem cá, outono, vem feliz

pra dizer adeus

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por Mariana Paiva

Só sei amar com palavras, então essas. Que só agora saem porque perder, às vezes, só se entende mesmo com o silêncio. Naquela noite em que soube de você, meu amigo, eu fiquei sem voz. Lembrei da legenda que minha avó sempre fazia quando, ao passar as folhas do álbum de fotografias, se deparava com o olhar vermelho de choro de meu tio. O cabelo despenteado, a cama de solteiro, uma tristeza que nunca vi ao vivo. Minha vó dizia: “Nesse dia o melhor amigo dele morreu”. Agnelo.

Mas eu nunca tinha perdido um amigo até aquela quarta-feira. Enquanto chorava eu lembrava daquela foto sobre a qual nunca tinha falado a ninguém. Daquela foto que minha avó nunca deixou passar em branco no álbum. Porque ela, sem saber – ou talvez sabendo, porque sabe das coisas -, tinha me ensinado. A dor é parte da vida, e não precisa ser escondida nem se envergonhar. Eu menina aprendi ali. Mais de vinte anos depois, lembrei daquela foto do álbum. Agnelo me ensinava ali a perder Noel. As letras embaralhadas de um contendo o nome do outro. A foto antiga da saudade me ensinando a viver a vida naquela hora.

E a lembrança dos sambas de João Nogueira num domingo em que fez sol, a vitrola na sala de casa, a comida de Soninha cheirando lá da rua. Ou o pão que ele sempre cortava na metade para comer, e eu comia a outra parte, porque também gostava assim. As tardes que viravam noites ao redor da mesa da cozinha onde cabia de tudo, de política a literatura, de gente a planos de viagens infinitas. Do abraço que eu guardo no coração, porque quando cheguei aqui era tudo deserto e sua casa e sua família me acolheram. O relógio da sala, as eubioses cabeludas de viver. Bispo do Rosário na parede da sala ensinando como fazer um muro no fundo da casa. Abajur alto iluminando as páginas ideias dias.

Tudo o que penso quando penso em você é na alegria de se espalhar por aí, de conhecer, de gostar de gente, de querer ouvir falar e ler infinitos. Saber as ruas de São Paulo todas pelo nome, flanar tranquilo, escolher um boteco para conversar com pessoas. Da última vez eu guardo aquele bar de portas cerradas com nós todos lá dentro, Toninho servindo saideiras infinitas. Tarde virando noite noite virando mais tarde. A vida é de viver muito, você me disse tantas vezes sem sequer uma palavra. Por isso um dia ainda te escrevo um poema, meu amigo

 

o canto que eu queria ouvir

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por Mariana Paiva

Era um dia de chuva quando o livro me fisgou. Mordi a isca de palavras ainda na primeira página, desconcertada por tanto. Quando eu preciso de silêncio eu corro pras palavras – é assim comigo desde sempre. E fiquei querendo fazer parte de uma frase, tanto que depois dela,  com a mesma velocidade com a qual abri o livro, fechei:

Pensar em ir embora eu pensava. Difícil era desatar o nó entre o pensamento e os pés.

Nocaute. Entregue estava quando dei por mim, livro fechado no colo, olhar perdido. Eu entendia. Quando um livro te acolhe é assim. Esse é Canto do Uirapuru, de Érica Bombardi, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional na categoria Literatura Juvenil. Conta a história de Max, um dos moradores de Canto do Uirapuru, um adolescente que vive com sua mãe e seu avô. O pai caiu no mundo. E os três ali, juntos, buscando alegria na polenta do almoço. Sonhando esperança no pacu que o avô jura que vai pescar outra vez no rio.

Livro de amor, coragem, livro de infinito. Então pode ser assim? Fiquei pensando logo que queria ter tido um Canto do Uirapuru pra ler quando eu mesma era menina. Depois pensei: que bom é poder resgatar a meninice apesar da chuva, dos boletos, das eleições. Livro como amor de salvação. Um tempinho a mais vivendo a história de Max, e tava tão bom que eu nem vi quando terminou. Fiquei querendo mais, uma saga, quem sabe mais uns 7 livros que contassem a coragem de Max, um sobre o amor e um – ou dois – sobre a liberdade recém-descoberta de ser quem se é. A delícia que é cada passo do caminho quando só se sabe ir em frente (e ser infinito como se sabe aos 16)

 

Canto do Uirapuru
Érica Bombardi
editora Escrita Fina
156 páginas
R$ 30,90 (livro físico)
R$ 24,10 (e-book)

 

o riso de Ben

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por Mariana Paiva

Tomava café da manhã e corria os olhos pelas notícias quando aconteceu. Em meio às tristezas cotidianas que os jornais trazem, lembrei do vídeo de Benício. Vi a alegria escancarada de menino de dois anos pulando em frente à câmera parada, tirando tudo do lugar. Feliz é do jeito que a gente quer. As notícias de um mundo tão complicado nos jornais e Benício ali, no vídeo que a memória me trouxe, sorrindo simples.

Se há esperança, ela mora no riso esparramado de Benício. As manchetes de jornais pouco podem contra a alegria desafiadora de quem tem o coração aberto, de quem quer ficar mais perto para ouvir a história que a professora conta na escola. Todo mundo sentado com medo e ele querendo entrar no livro, ele que passa sorrindo como um furacão e pulando em frente à câmera. Rindo solto como um ato de resistência, como um ato de amor pra esse mundo que precisa tanto, tanto dele.

Os braços balançando, o riso lhe fechando os olhos, a alegria tão grande que não dá pra conter. É pra ser festa todo dia e ele sabe. Não é só inocência. Essa vontade de amor é velha, ancestral, e não se perde: é forte como um meteoro porque o riso de Benício é amigo do tempo. E porque é nele que mora (e resiste, feliz) todo futuro

 

1968 – o ano que não terminou

IMG_20180527_201431641_2por Mariana Paiva

Uma estante de livro tem seus mistérios, páginas nunca antes exploradas até que, um dia, os olhos pousem numa capa e decidam que é hora. Assim foi com “1968 – o ano que não terminou”, de Zuenir Ventura.  É que voltar ao passado talvez seja mesmo uma boa estratégia para entender melhor o presente e pensar sobre o futuro.

No livro, o jornalista e escritor Zuenir Ventura se debruça sobre o ano de 1968, famoso na história do Brasil pela emissão do Ato Institucional n. 5 (AI-5) pelo então presidente Costa e Silva, que pôs em suspensão as garantias constitucionais, dissolveu o Congresso e terminou de oficializar a prática da tortura no país. O país já vivia sob regime militar desde 1964, mas foi em 1968 que este se endureceu frente às resistências que enfrentava.

Zuenir começa o livro com o último respiro da liberdade no ano duro que estava por vir: a festa de réveillon na casa de Heloísa Buarque de Hollanda. As presenças, os risos, as histórias, as memórias perdidas. E então, após o romper do ano, é a falta de liberdade que impera. A resistência paga seu preço que, a cada dia que passa, se torna mais alto. Os estudantes perseguidos. Artistas humilhados depois que plateias consideram espetáculos teatrais indecentes (aqui o caso Roda Viva, de José Celso, e do sequestro sofrido por  Norma Bengell). Parte da população, distraída, segue sua rotina de idas ao zoológico ou à praia. Prepara o lanche que o filho vai levar para a escola no dia seguinte. Como se nada estivesse acontecendo.

Se o livro de Zuenir tem um mérito definitivo (dentre os muitos outros que possui), é esse: lembrar que uma ditadura militar não acontece do dia pra noite. É preciso adesão popular, é preciso que uma parcela da população esteja alheia, é preciso que outra acredite nos métodos (ainda que duros como a tortura). É preciso que haja nacionalismo (não foi esse elemento, aliás, um dos que serviram para justificar atrocidades como o holocausto?), conservadorismo, pensamento fascista à espreita em cada esquina. 50 anos se passaram e, pelo visto, não estamos assim tão longe de 1968. Pelo contrário: parecemos estar, a cada dia, mais perto.

 

1968
1968 - o ano que não terminou
Zuenir Ventura
Editora Objetiva
320 páginas 

SOL DE PRIMAVERA, ABRE AS JANELAS DE MEU PEITO

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Por Mariana Paiva

 

Se você ainda estivesse aí, quer dizer, de algum jeito você ainda está, eu dava aquela risada que você gosta e diria: tô feliz. Sim, apesar de saudade e é tanta, tanta, que o coração refaz sozinho todos os trajetos, que quando dou por mim o pensamento vai longe e nem sei direito onde estou. É preciso aquele truque de quem segue Eckhard Tolle de estalar os dedos e dizer que estou aqui para realmente estar.

Sorriso de primavera, você disse. Guardo as três palavras e levo para onde vou: é preciso florir, né? Sorriso de primavera. Não de outono, não de verão, menos ainda de inverno. Sorriso de primavera. Sorrio com a boca e com os olhos rapidinho assim, danço sob uma nuvem de lavanda, sou bailarina em sonho. As mãos delicadas como a de uma pianista clássica se balançam no ar, o mínimo atrito, leveza.

Quando tudo é silêncio eu abro meu peito para deixar as memórias arejarem, tomarem o sol desse outono/primavera da gente. De portas e janelas escancaradas meu peito é todo dessa lembrança feliz. Secretamente sei dançar. E danço

PEQUENO MANUAL DE DIA DA MULHER PARA PUBLICITÁRIOS

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  • por Mariana Paiva

O dia da mulher vem chegando e, com ele, as inúmeras pedradas e cagadas (não tem outra palavra, sorry) da publicidade. A mais recente e a pior de todas – até aqui, enquanto escrevo o texto, lembrando que a lei de Murphy é a pior inimiga da mulher – foi essa que vou comentar. E olha que é difícil eleger uma pior com tanto sorteio de batedeira e aspirador de pó nas empresas. Com tanta distribuição de florzinha um dia do ano quando o contracheque mostra salários menores para as mulheres que exercem as mesmas funções que os homens.

Estamos em Salvador, o ano é 2018. O bar já é famoso – não pelo chope geladíssimo, não pelo ambiente descolado, mas pelos foras no entendimento de como tratar mulheres. No dia de open bar, as mulheres entram de graça, um chamariz maravilhoso para os homens que frequentam o lugar. E enche, naturalmente.

A campanha desse ano é tão surrealmente machista que chega até a ficar difícil explicar. A ideia é a seguinte: amanhã, que calhou de cair no dia do famoso open bar, a mulher que for vai ganhar um presente incrível. Quer dizer, na verdade, quem vai ganhar o presente é o homem. Aí ele decide se vai ser “gentil” em ceder o mimo a alguma das mulheres presentes. Sim, você leu certo. 1950 tá ligando e esse pessoal tá atendendo.

Não, gente. Não é assim que faz publicidade para o dia da mulher. Em 2018, não queremos ganhar nada de ninguém. É que não estamos acostumadas a sermos favorecidas, exceto nos naufrágios. Tudo o que temos nós lutamos pra conseguir: foram quilos e mais quilos de sutiãs queimados (e que continuamos queimando, cada uma a seu jeito) pra sobreviver nesse mundo cão. E os homens já ganham presentes todo dia, qual a novidade? Precisa ser dia da mulher? Eles já têm os melhores cargos, os melhores salários, a preferência nas entrevistas de emprego. Vai presentear homem em pleno dia da mulher? Me faça uma garapa, vá.

Isso só me mostra uma coisa das mais urgentes: pelamordedeus, coordenações de cursos de publicidade, vamos falar mais de mulheres. de negros (olha aí a pedrada do papel Neve preto). de uniões homoafetivas. Os alunos precisam melhorar pra que não cresçam e dêem uns vexames assim, poxa, fica feio pra quem formou também. Vamos melhorar essas grades curriculares, dar palestras a esses meninos, ensinar empatia, já que em casa a gente sabe como é.

Fica aqui minha dica pro bar: na dúvida, é melhor fazer uma caça ao tesouro (só de mulheres, naturalmente). Estamos acostumadas a ir atrás do que a gente quer. Mas ganhar não, ganhar nunca. E “gentileza” de homem em open bar no dia da mulher quer dizer qualquer coisa, menos gentileza. Prefiro não.

 

  • a imagem é da obra “Como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa”, de Bispo do Rosário

meu desejo de esperar

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por Mariana Paiva

 

O povo passava na rua, um cheiro danado de comida e era perto da hora do almoço. Eu vou dizer a verdade que não vi muito do que acontecia ao meu redor. Quando dei por mim, já cantava. Cantava baixinho, afinada. Não lembro a música. Mas foi bom, tão bom, uma epifania sob aquele sol sem trégua. O borracheiro consertando o carro e eu cantando pra alguém ouvir. Qualquer hora dessas a canção me volta.

De vez em quando a gente lembra que canta. E então uma música velha, coisa do tempo em que eu escutava rádio todo dia. O jabá devia ser bom porque essa toda hora tocava. Eu gostava tanto. Mas não me lembrava da última vez que soltara a voz com tanta vontade depois daquele dia na rua, sem vergonha, cantando tão bonito, daquele jeito que a gente só canta pra quem sabe de nossos mistérios. Nossos escuros. Lembrava tanto da letra que parecia que tinha sido ontem aquela tarde branca em Salvador, o caderno os livros as canetas, tudo espalhado sobre a cama, o rádio enfim acertando na programação, minha música tocava. Naquele tempo a música que tocava era sempre a minha. Minha.

Canto e estou de novo na praça Tomé de Souza. Essa voz te devolve coisas, menina, coisas que você pensava esquecidas. Te devolve a noite, o mendigo com a mão na barriga, te devolve a fome, aquela que há muito você não sente. Você canta. Sabe que vai ser sempre assim: esquecimento e então lembrança. Canta sem medo de desafino, canta sem medo dos graves, dos agudos. Canta e sorri, infinita.

 

  • a foto é um frame de “San Junipero”, episódio de Black Mirror

O risonho cavalo do príncipe

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por Mariana Paiva

O acaso continua dono de minhas mãos nas bibliotecas. Quando vejo, chego em casa com um livro sobre o qual nunca li uma linha ou indicação, sem pretensão de ser bom ou ruim, nada de expectativas. Uma novidade sem precedentes essa aposta sem saber o que virá pela frente: mas não é assim também viver? Ser uma leitora aleatória tem me ensinado muito disso.

Voltei para casa com “O risonho cavalo do príncipe”, de José J. Veiga. Gostei do título e trouxe, tal qual menino pequeno quando encarna num brinquedo por causa das cores. E a surpresa que se escondia nas páginas eu não fazia ideia. Essa já era a melhor parte, antes mesmo de começar a leitura.

Só que foi bom. Tão bom que eu, que leio muito rápido, me amarrei pra chegar ao fim porque tava gostando. E a história é sobre acaso: duas crianças e uma tia que, só compreendendo poucas palavras de um livro em alemão deixado para trás por um viajante, decidem inventar a seu gosto uma história. A tia, que sabia um alemão bem rasteiro, conseguiu decifrar apenas que o livro falava de cavalo, príncipe, computadores, porcos e arqueologia. De repente, ela, Mem e a sobrinha César não precisavam de mais do que isso para criar sua própria (e encantadora) história, também sobre acasos. O risonho cavalo do príncipe é um livro sobre acasos que tem outro livro sobre acasos dentro: o do alemão Karl, que sai da Alemanha rumo à Etiópia para procurar o antigo reino das Galimátias. Ele e o guia local Alkilov se agarram aos acasos para seguir viagem.

E a graça é essa mesmo (do livro e também da vida): por vezes não saber onde se está e ir apenas tateando no que acontece para ir adiante. Assim como a história construída por tia Basília, Mem e César, assim como a viagem de Karl e Alkilov, José J. Veiga deixa o leitor passear à vontade por seus devaneios num livro absolutamente divertido e crítico. Seja no cavalo do príncipe que ri diante do elogio aos reinos ou no nojo/estranhamento que os alemães sentem de estar em território africano, tem espaço para crítica. Tudo sem afetação e cheio de ironia.

Ele conhecia bem a mentalidade de europeus que insistem em levar para o estrangeiro até os seus hábitos alimentares, como se fossem a dentadura, a úlcera, a cirrose, e com isso perdem o melhor da viagem, que é a aventura de conhecer comida e sabores diferentes. Por isso é que os restaurantes dos hotéis cinco estrelas do mundo inteiro são detestáveis: a comida tem sempre o mesmo gosto, isto é, nenhum.

“O risonho cavalo do príncipe” é daqueles livros em que o autor abre espaço para quem está lendo criar sua própria história, sem finais demasiadamente conclusivos. São duas histórias, uma dentro da outra, e ainda tem lugar para quem lê. Coisa gostosa de ver na literatura, ainda mais com uma linguagem tão livre e tranquila. Livro bom de fazer companhia na viagem, na praia, no dia de chuva, sem afetação canônica nem nada parecido: talvez seja esse mesmo o maior mérito dessa aventura dupla de José J. Veiga.